segunda-feira, 8 de junho de 2009

O papel da Filosofia no ensino das Humanidades

Após o predomínio da racionalidade cognitivo-instrumental e do primado da técnica nos dois últimos séculos, ressurge nos meios acadêmicos uma forte preocupação em se ter as artes e as humanidades – literatura, filosofia e história – como eixos fundamentais da produção do saber científico. Tal preocupação já começa a tomar corpo no interior de diversas agremiações profissionais. A medicina, por exemplo, durante boa parte de sua história, teve o humanismo como fonte quase exclusiva do saber médico. Isso teria mudado a partir do século XIX, quando o desenvolvimento das ciências biológicas, em confluência com a física, a química e a matemática, determinou uma reorganização do saber médico, desconsiderando paulatinamente as fontes das humanidades.

O anseio por um saber em harmonia com o ser humano e o meio ambiente veio justamente com a constatação dos déficits e abusos da ciência, apropriada ultimamente pela lógica capitalista apenas em função de sua utilidade técnica e o ilimitado desejo de poder, como bem lembrou o filósofo Karl Jaspers.

Coube à própria filosofia o papel de engendrar as diretrizes e propostas para uma “nova ciência”, mediante manifestos em favor de uma nova ética (Jonas, 1995), da dignidade da vida humana (Habermas, 2004), e do conhecimento prudente (Santos, 2005), em oposição ao crescente caráter instrumental e utilitarista da ciência (Lacey, 1999).

O que almejam os filósofos da ciência? Estão alarmados com a previsão das conseqüências da ação científica para a vida como um todo no planeta. Resgatar espaço para as humanidades no espaço universitário não se trata apenas de evocar o princípio humanista do sofista Protágoras de Abdera (sec. V a.C.), para quem “o homem é a medida de todas as coisas”, tão alardeado durante o Renascimento. Mas, sobretudo o de buscar princípios e paradigmas capazes de reorientar o fazer científico para harmonizar o ser humano com a natureza.

Dentre esses novos paradigmas, temos o contrato natural de Michel Serres - um acordo não-assinado, que reconhece um equilíbrio entre “a força de nossas intervenções globais e a globalidade do mundo” (1991, p.59). Bruno Latour também observa as recentes reações da natureza às intervenções humanas como uma chave para entendermos a não-modernidade do mundo em que vivemos - uma retenção dos excessos da razão e de seus dualismos, do pensamento crítico, ou uma retenção das relações de propriedade e dominação da razão sobre os seus objetos do conhecimento (Latour, 1997).

Em outro encaminhamento contra uma sociedade dominada pela técnica, Boaventura de Souza Santos propõe o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, por meio das duas dimensões do princípio da comunidade: participação e solidariedade. Neste paradigma conhecimento-emancipação, a solidariedade torna-se a forma hegemônica de saber. Para ele é necessário “relativizar as pretensões cognitivas da racionalidade cognitivo-instrumental”, em reconhecimento dos limites do conhecimento como forma de resgatar as tradições epistemológicas marginalizadas na modernidade ocidental (Santos, 2005).

Além da comunidade acadêmica, a opinião pública deve ter um papel preponderante nessa reorientação. Até porque o mecanismo para se promover estas estratégias passa, se não exclusivamente, sobretudo pela via do consenso público. Não se pode olvidar o grande público (ou uma parcela especializada deste) para fazer tramitar, entre os grupos especializados (comunidade científica, jurídica, intelectuais etc.), os interesses, riscos e escolhas para orientar a atividade científica.

Princípios como responsabilidade (Jonas, 1995), precaução (Lacey, 2006), conhecimento prudente, solidariedade e participação (Santos, 2005), contrato natural (Serres, 1991), jamais sairão do campo teórico-moral numa sociedade despolitizada se não forem engendrados com a formação e capacitação de uma opinião pública, uma vez que “a solução dos problemas decorrentes da insuficiência do conhecimento científico, só superada a longo prazo, foi confiada ao direito” (Santos, 2005, p.185).

E se precisamos construir consenso, capacitar a opinião pública a um agir político que reordene o fazer científico, isso só será possível se resgatarmos o saber humanístico em nossas instituições de ensino. E a Filosofia, como disciplina humanística, possui em sua raiz histórica não apenas as condições, mas o dever de cooperar com este reposicionamento. Como bem afirmou o filósofo Nietzsche: “Nós somos mais livres do que jamais o fomos para lançar o olhar em todas as direções; nós não percebemos limite algum. Temos essa vantagem de sentir em volta de nós um espaço imenso - mas também um vazio imenso...”

Referências
HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965.
JONAS, H. El princípio de responsabilidad. Ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995.
LACEY, H. O Princípio de Precaução e a autonomia da ciência. Scient. Stud., v.4, n.3, p.373-92, 2006.
LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaio sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC, 2001.
______. Jamais fomos modernos - ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1994.
OLIVEIRA, J. A.; EPSTEIN, I. Tempo, ciência e consenso: os diferentes tempos que envolvem a pesquisa científica, a decisão política e a opinião pública. Em INTERFACE COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.29, p.165-175, abr./jun. 2009.
SANTOS, B.S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2005.

terça-feira, 2 de junho de 2009



Com O Discurso da Servidão Voluntária(1552), Etienne de La Boétie percebe que a gênese da desumana opressão exercida pelos poderosos aos menos favorecidos é atemporal e universal. Escrita como um mero panfleto militante, aos 16 ou 18 anos pelo pensador francês, enquanto estudante de Direito, esmiúça os porquês que levam a multidão a se permitir escravizar, cega e voluntariamente, a se dispor a servir.

A primeira razão da servidão voluntária é o HÁBITO. Por hábito, somos ensinados a servir, nos escravizamos. É o costume que, à medida que o tempo passa, nos leva não somente a engolir, pacientemente, os sapos venenosos da escravidão, mas até mesmo a desejá-lo: “pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais.”

Sendo assim, de se nascer servo e ser criado na servidão decorre naturalmente a segunda razão da servidão voluntária: a COVARDIA! Sob a tirania (mesmo que disfarçada), necessariamente os homens se acovardam, se escravizam: Os escravos não têm ardor nem constância no combate. Só vão a ele como que obrigados, por assim dizer embotados, livrando-se de um dever com dificuldade: não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos honra para sempre junto aos nossos semelhantes. Entre os homens livres, ao contrário, é à discussão, polêmica, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos: sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: “bestializar seus súditos!”.

Discorrendo sobre a terceira razão da servidão voluntária, a PARTICIPAÇÃO NA TIRANIA, La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são sempre quatro ou cinco homens que o apóiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vêm depois deles. E quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até ele.

Rousseau e o contrato social



A concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.

A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.

Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.
Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.

Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.
A vontade geral não é, de forma alguma, adição pura e simples de vontades particulares. Vontade geral não é simplesmente vontade de todos ou da maioria. Também não se trata da soma das vontades individuais, dos interesses particulares, mas do interesse geral, da vontade geral.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Locke e a teoria liberal



...fale-se a respeito deles (os reis) como de homens divinos, que desceram do Céu e que só de Deus dependem: um povo geralmente maltratado contra todo direito não perderá a oportunidade de libertar-se das suas misérias e de sacudir o pesado jugo que com tanta injustiça lhe impusera. Locke

No pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.

De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.

Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho. Para ele, os homens nasciam com três direitos: liberdade, propriedade e garantia de vida. Em seu “estado natural” ou “estado da natureza”, os homens primitivos deveriam lutar ou fugir para defender esses direitos.
Em um determinado momento da história, os homens resolveram fazer um contrato e por meio dele reafirmar esses direitos naturais. Para evitar que fossem usurpados, deveriam eleger um governo, a quem caberia defendê-los e fazer todos respeitar a vida, a propriedade e a liberdade (a condição natural). A partir daí, para Locke, começou a civilização.
É justamente nesse pensamento que o capitalismo encontrou uma de suas bases teóricas mais importantes para o seu desenvolvimento. Uma característica fundamental do capitalismo nascente era a propriedade individual e o fim da propriedade coletiva. O indivíduo tornara-se o centro da atividade econômica e jurídica, pois consome e produz. É sobre ele que recai toda a responsabilidade ética e política.

Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural? Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.
Para aprofundar um pouco a questão, é importante diferenciar o Direito Natural do Direito Positivo. Esses dois conceitos são fundamentais para a formação cidadã. O Direito Natural seria uma derivação da razão correta – assim como a natureza tem suas leis, o homem também teria, por natureza, as suas. Já o Direito Positivo seria o conjunto de leis que os homens criam para conviver em sociedade.

Para Locke, a liberdade, a propriedade e a vida são constitutivos do Direito Natural de cada indivíduo. No entanto, para mantê-lo, o homem precisa conviver com outros que têm o mesmo Direito Natural; então, para que o convívio seja possível, os homens necessitam produzir leis positivas (inventadas) para manutenção desses mesmos direitos naturais. Assim, a partir do direito natural de cada um, cria-se o direito positivo que todos têm de obedecer. Uma valorização do indivíduo como agente histórico e jurídico. Além disso, em razão do empirismo, o indivíduo também é responsável pela aquisição e produção do conhecimento. Por isso a ação depende necessariamente do indivíduo. O tipo de governo que ele deixa existir, o tipo de relações sociais sob as quais viverá; enfim, sua felicidade ou tristeza não compete mais ao rei ou ao senhor feudal, mas somente ao indivíduo.

O Estado existe então a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.
O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:

1. Por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
2. Visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;
3. O Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.


CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000.

CHEVALLIER, Jean J. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1998.

MICELI, P. LUIS, A. coord. FINNI, M. I. Introdução à teoria do indivíduo. Cadernos do Estudante, Filosofia. São Paulo: SEE, 2008.

O leviatã de Hobbes


“O homem é um lobo para o homem”. Hobbes

Em 1651 é publicado em Londres um livro de título estranho: Leviatã, ou a Matéria, a Forma e o Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. “Leviatã” é um monstro bíblico, uma espécie de grande hipopótamo de que fala o livro de Jó, precisando “que não há poder sobre a terra que se lhe possa comparar” (Jó 41.1-10).
O autor desse estranho livro, Thomas Hobbes (1587-1666), parte do princípio de que os homens são egoístas e que o mundo não satisfaz todas as suas necessidades, defendendo por isso que no Estado Natural, sem a existência da sociedade civil, há necessariamente competição entre os homens pela riqueza, segurança e glória. A luta que se segue é a «guerra de todos contra todos», na célebre formulação de Hobbes, em que por isso não pode haver comércio, indústria ou civilização, e em que a vida do homem é «solitária, pobre, suja, brutal e curta.» A luta ocorre porque cada homem persegue racionalmente os seus próprios interesses, sem que o resultado interesse a alguém.
Como terminar com esta situação? A solução não é apelar à moral e à justiça, já que no estado natural estas idéias não fazem sentido. O nosso raciocínio leva-nos a procurar a paz se for possível, e a utilizar todos os meios da guerra se a não conseguirmos. Então como é que a paz é conseguida. Somente por meio de um contrato social. Temos que aceitar abandonar a nossa capacidade de atacar os outros em troca do abandono pelos outros do direito de nos atacarem.
A essência da soberania consiste unicamente em ter o poder suficiente para manter a paz, punindo aqueles que a quebram. Quando este soberano - o Leviatã - existe , a justiça passa a ter sentido já que os acordos e as promessas passam a ser obrigatoriamente cumpridos. A partir deste momento cada membro tem razão suficiente para ser justo, já que o soberano assegura que os que cumprirem os acordos serão convenientemente punidos.

Os homens naturais
No princípio de tudo está o movimento. Do movimento nasce a sensação. Apetite ou desejo, aversão ou ódio, trata-se de um “pequeno começo de movimento”, ou o esforço em direção a alguma coisa. Nada existe de bom ou mau em si: estes adjetivos só têm sentido relativamente àquele que os emprega. O prazer é a sensação do bem. O desprazer, a sensação do mal. O mal supremo é a morte. “O que se chama felicidade” existe quando nossos desejos se realizam com êxito constante. O poder é a condição sine qua non para essa felicidade. Riquezas, ciência, honra, são apenas formas do poder. Há no homem um desejo perpétuo, incessante de poder, com só termina com a morte.
Por isso concorrência, desconfiança recíproca, avidez de glória ou fama têm por resultado a guerra perpétua: o homem é um lobo para o homem (homo homini lúpus). Sob pena de destruição da espécie humana, é preciso que o homem abandone tal estado. A sua salvação consiste em abandonar este estado, mediante o uso da razão, àquilo que “conduz à nossa própria conservação e defesa”. Hobbes destaca então 19 leis de natureza, resumidas numa fórmula “simples e inteligível: não façais aos outros o que não quereis que vos façam”. Concordai, portanto, em renunciar ao direito absoluto sobre todas as coisas, direito que cada um de vós, igual aos outros, possui no estado de natureza (direito natural, na linguagem de Hobbes).
Nessa concepção de Hobbes, no Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar.
Dada a natureza humana, sabe-se que, não obstante o temor da morte e os preceitos da razão, tal acordo não será observado, a menos que um poder irresistível, visível e tangível, armado do castigo, constranja à observância os homens atemorizados. Quem é este poder? O Estado ou coisa pública, o homem artificial. Quem o constituirá? São os homens naturais que o constituirão, por um pacto voluntário firmando entre si, tendo em vista a própria proteção, a fim de saírem, sem temor de recaída, do espantoso estado natural – para a sua libertação, sua salvação.

O homem artificial, o Estado-Leviatã
A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania, instituindo a autoridade política, isto é, a polis ou a civitas. É instituído, portanto, o estado civil, que deve por um fim às lutas mortais do estado de natureza.
A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.
Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado.
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O fundamental não é o número de governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. O regime político que parece a Hobbes mais capaz de assegurar paz e segurança será a monarquia, pois o “interesse pessoal do soberano é o mesmo que o interesse público”.
O Estado hobbesiano não encarna verdade religiosa alguma, nenhuma mística. Não exige dos súditos crenças, mas obediência. Pouco se lhe dá o foro interior. Sua lógica impõe uma sincronização prática entre o que é de ordem religiosa e de ordem civil, para que os súditos não sejam abalados, dilacerados, dissociados entre as ordens do poder religioso e as do poder civil – para que reine a paz, à qual as discussões político-religiosas são fatais. A paz que exige, em matéria de atos exteriores da religião, não a tolerância, mas o conformismo.

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000.

CHEVALLIER, Jean J. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1998.

RUBY, Christian. Introdução à filosofia política. São Paulo: Unesp, 1998.

Fortuna e Virtú: o realismo político de Maquiavel em O Príncipe


A PERSONIFICAÇÃO E DIVINIZAÇÃO DO ACASO

O conceito Fortuna (Tykhé) significa o acaso, a sorte, o bom ou mau fado. Nasceu com a preocupação de Aristóteles e Demócrito em conhecer os diversos fatores que influenciam determinados acontecimentos, quando a causa se produz por si mesmo, de maneira imprevisível e fortuita.
Ao questionar o acaso mediante a Física, a antigüidade clássica aproximou-o das questões públicas do cotidiano e produziu a compreensão de uma divindade que regia os acontecimentos na vida dos seres humanos. Logo, a noção de Fortuna foi assimilada pela religião grega e vários templos foram construídos, sendo amplamente cultuada na religião romana. Era vista como uma deusa bondosa e confiável, que concedia ventos propícios e acompanhamento divino. Segurando um corno repleto de riquezas, a Fortuna era representada como piloto dos mortais e símbolo da prosperidade. Na Idade Média suas representações mostravam uma mulher sobre uma roda, significando os altos e baixos da vida, como a roda das mudanças que gira como o “fluxo e refluxo da maré”.
De concepção semi-filosófica e semi-religiosa, a Fortuna adquiriu enorme importância nos escritos de historiadores e moralistas romanos. Para tais escritores, a Fortuna era uma deusa boa e aliada, sendo necessário atraí-la para receber seus bens que são a honra, riquezas e influência. Por ser mulher, esta se deixava seduzir pela vir, ou o homem perfeitamente varonil. Mas é a partir do escritor cristão Boécio que a Fortuna recebe uma imagem cristã e irá ganhar enorme repercussão na obra de importantes escritores como Plutarco, Petrarca e Dante Alighieri, estendendo até autores menores no tempo de Maquiavel. Para Boécio, a Fortuna é um agente da providência divina e, como tal, rege o destino dos homens. Já não é mais boa, mas traiçoeira e impiedosa, caracterizada como um poder cego, indiscriminada ao oferecer seus dons.


A FORTUNA NO TEMPO DE MAQUIAVEL

O Renascimento levou ao tempo de Maquiavel toda a superstição vinda da antigüidade clássica, ao menos entre as camadas populares. Astrologia e crença no destino dominavam até mesmo figuras importantes do clero. A imagem da Fortuna como dirigente dos negócios humanos e o fatalismo da crença nos astros impunham um rígido imobilismo aos cidadãos da época. Chefes de Estado e mesmo papas consultavam os astros antes de suas decisões. Mas esse poder inexorável da Fortuna estava para ser questionado.

A FORTUNA E A LIBERDADE DA AÇÃO POLÍTICA

Em meio a essa superstição que Maquiavel usa a Fortuna como um de seus conceitos básicos. Todavia, seu racionalismo não se rende ao uso de uma concepção mítico-filosófica. Ao analisar as variantes nos negócios públicos e nos fatos políticos da história, Machiavelli resgata a noção clássica da Fortuna. Seu uso é meramente literário, uma vez que seculariza e realiza uma mutação no mito.
Ao afirmar que a deusa é mulher e se deixa seduzir por homens impetuosos, portadores de Virtù, desfecha um golpe na crença de seu poder inexorável. Para atacar a visão de que a deusa seja agente da providência, assevera que Deus legou-nos 50% de livre-arbítrio para nossas ações. Ou seja, não é a Fortuna que rege nosso destino, mas o próprio exercício de nossas ações. Não mais os céus, as estrelas, mas o ser humano e todas as suas possibilidades. Surge então o homem, demiurgo político e criador, o príncipe.

Estou certo de que é melhor ser impetuoso do que prudente, porque a Fortuna é mulher e, para ter-lhe o domínio, mister se faz bater nela e contrariá-la. E costuma-se reconhecer que a mulher se deixa subjugar mais por estes do que por aqueles que agem de maneira indiferente. A Fortuna, como mulher, é sempre amiga dos jovens, pois são menos circunspectos, mais impetuosos e com maior audácia a dominam (MAQUIAVEL, cap. XXV).

Em suma, Maquiavel convoca os cidadãos de seu tempo para o livre exercício das ações políticas. Ele não crê no mito, mas usa de coerência formal e literária para atingir o inconsciente coletivo e libertar do jugo da astrologia. Para Maquiavel, a Fortuna só existe quando os homens não fazem uso da ação, de sua liberdade de criar e recriar seus horizontes. As implicações dessa racionalização e secularização do mito constituem o esforço de Maquiavel em destruir a crença num determinismo e fatalismo que enclausuravam a Itália de seu tempo. Seu pensamento abre as portas para se pensar que a possibilidade e a liberdade humanas devem estar isentas dos grilhões da religião.

Uma vez que nosso livre-arbítrio permanece, acredito poder ser verdadeiro o fato de que a Fortuna arbitre metade de nossas ações, mas que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade quase inteira (MAQUIAVEL, cap. XV).

Maquiavel não conclui se os 50% de nossa ação exigem esforço ou esmerada virtude. A frase também pode querer dizer que a metade deixada aos homens vem quase automaticamente, e o que for feito por meio da virtude pode ficar para a metade pertencente à Fortuna. Maquiavel procura destruir a crença na total providência ou controle de Deus, argumentando que os céus (Deus, os espíritos ou a Fortuna) não retiram por completo do ser humano sua possibilidade de ação. O mais importante para o cidadão florentino é incutir em seus compatriotas a possibilidade de agir politicamente e se antecipar aos acontecimentos fortuitos. Uma rica analogia segue sua explicação:

Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se enfurecem, transbordam pelas planícies, acabam com as árvores, as construções, arrastam montes de terra de um ponto a outro; tudo foge diante dele, tudo se submete a seu ímpeto, sem conseguir detê-lo, e, embora as coisas aconteçam assim, não é menos verdade que os homens, quando a calmaria retorna, são capazes de fazer consertos e barragens, de sorte que, em outra cheia, aqueles rios estarão correndo por um canal, e seu ímpeto não será nem tão livre nem tão nocivo. Assim também se passa com a Fortuna; seu poder se manifesta onde não há resistência organizada, voltando ela a sua violência apenas para onde não se construíram diques nem se fizeram reparos para contê-la. [...] E assim acredito ter dito o suficiente sobre os obstáculos que se podem opor à Fortuna, em geral (MAQUIAVEL, cap. XXV).


REFERÊNCIA

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 2000.