sexta-feira, 15 de maio de 2009

Locke e a teoria liberal



...fale-se a respeito deles (os reis) como de homens divinos, que desceram do Céu e que só de Deus dependem: um povo geralmente maltratado contra todo direito não perderá a oportunidade de libertar-se das suas misérias e de sacudir o pesado jugo que com tanta injustiça lhe impusera. Locke

No pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.

De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.

Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho. Para ele, os homens nasciam com três direitos: liberdade, propriedade e garantia de vida. Em seu “estado natural” ou “estado da natureza”, os homens primitivos deveriam lutar ou fugir para defender esses direitos.
Em um determinado momento da história, os homens resolveram fazer um contrato e por meio dele reafirmar esses direitos naturais. Para evitar que fossem usurpados, deveriam eleger um governo, a quem caberia defendê-los e fazer todos respeitar a vida, a propriedade e a liberdade (a condição natural). A partir daí, para Locke, começou a civilização.
É justamente nesse pensamento que o capitalismo encontrou uma de suas bases teóricas mais importantes para o seu desenvolvimento. Uma característica fundamental do capitalismo nascente era a propriedade individual e o fim da propriedade coletiva. O indivíduo tornara-se o centro da atividade econômica e jurídica, pois consome e produz. É sobre ele que recai toda a responsabilidade ética e política.

Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural? Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.
Para aprofundar um pouco a questão, é importante diferenciar o Direito Natural do Direito Positivo. Esses dois conceitos são fundamentais para a formação cidadã. O Direito Natural seria uma derivação da razão correta – assim como a natureza tem suas leis, o homem também teria, por natureza, as suas. Já o Direito Positivo seria o conjunto de leis que os homens criam para conviver em sociedade.

Para Locke, a liberdade, a propriedade e a vida são constitutivos do Direito Natural de cada indivíduo. No entanto, para mantê-lo, o homem precisa conviver com outros que têm o mesmo Direito Natural; então, para que o convívio seja possível, os homens necessitam produzir leis positivas (inventadas) para manutenção desses mesmos direitos naturais. Assim, a partir do direito natural de cada um, cria-se o direito positivo que todos têm de obedecer. Uma valorização do indivíduo como agente histórico e jurídico. Além disso, em razão do empirismo, o indivíduo também é responsável pela aquisição e produção do conhecimento. Por isso a ação depende necessariamente do indivíduo. O tipo de governo que ele deixa existir, o tipo de relações sociais sob as quais viverá; enfim, sua felicidade ou tristeza não compete mais ao rei ou ao senhor feudal, mas somente ao indivíduo.

O Estado existe então a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.
O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:

1. Por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
2. Visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;
3. O Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.


CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000.

CHEVALLIER, Jean J. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1998.

MICELI, P. LUIS, A. coord. FINNI, M. I. Introdução à teoria do indivíduo. Cadernos do Estudante, Filosofia. São Paulo: SEE, 2008.