sexta-feira, 15 de maio de 2009

Fortuna e Virtú: o realismo político de Maquiavel em O Príncipe


A PERSONIFICAÇÃO E DIVINIZAÇÃO DO ACASO

O conceito Fortuna (Tykhé) significa o acaso, a sorte, o bom ou mau fado. Nasceu com a preocupação de Aristóteles e Demócrito em conhecer os diversos fatores que influenciam determinados acontecimentos, quando a causa se produz por si mesmo, de maneira imprevisível e fortuita.
Ao questionar o acaso mediante a Física, a antigüidade clássica aproximou-o das questões públicas do cotidiano e produziu a compreensão de uma divindade que regia os acontecimentos na vida dos seres humanos. Logo, a noção de Fortuna foi assimilada pela religião grega e vários templos foram construídos, sendo amplamente cultuada na religião romana. Era vista como uma deusa bondosa e confiável, que concedia ventos propícios e acompanhamento divino. Segurando um corno repleto de riquezas, a Fortuna era representada como piloto dos mortais e símbolo da prosperidade. Na Idade Média suas representações mostravam uma mulher sobre uma roda, significando os altos e baixos da vida, como a roda das mudanças que gira como o “fluxo e refluxo da maré”.
De concepção semi-filosófica e semi-religiosa, a Fortuna adquiriu enorme importância nos escritos de historiadores e moralistas romanos. Para tais escritores, a Fortuna era uma deusa boa e aliada, sendo necessário atraí-la para receber seus bens que são a honra, riquezas e influência. Por ser mulher, esta se deixava seduzir pela vir, ou o homem perfeitamente varonil. Mas é a partir do escritor cristão Boécio que a Fortuna recebe uma imagem cristã e irá ganhar enorme repercussão na obra de importantes escritores como Plutarco, Petrarca e Dante Alighieri, estendendo até autores menores no tempo de Maquiavel. Para Boécio, a Fortuna é um agente da providência divina e, como tal, rege o destino dos homens. Já não é mais boa, mas traiçoeira e impiedosa, caracterizada como um poder cego, indiscriminada ao oferecer seus dons.


A FORTUNA NO TEMPO DE MAQUIAVEL

O Renascimento levou ao tempo de Maquiavel toda a superstição vinda da antigüidade clássica, ao menos entre as camadas populares. Astrologia e crença no destino dominavam até mesmo figuras importantes do clero. A imagem da Fortuna como dirigente dos negócios humanos e o fatalismo da crença nos astros impunham um rígido imobilismo aos cidadãos da época. Chefes de Estado e mesmo papas consultavam os astros antes de suas decisões. Mas esse poder inexorável da Fortuna estava para ser questionado.

A FORTUNA E A LIBERDADE DA AÇÃO POLÍTICA

Em meio a essa superstição que Maquiavel usa a Fortuna como um de seus conceitos básicos. Todavia, seu racionalismo não se rende ao uso de uma concepção mítico-filosófica. Ao analisar as variantes nos negócios públicos e nos fatos políticos da história, Machiavelli resgata a noção clássica da Fortuna. Seu uso é meramente literário, uma vez que seculariza e realiza uma mutação no mito.
Ao afirmar que a deusa é mulher e se deixa seduzir por homens impetuosos, portadores de Virtù, desfecha um golpe na crença de seu poder inexorável. Para atacar a visão de que a deusa seja agente da providência, assevera que Deus legou-nos 50% de livre-arbítrio para nossas ações. Ou seja, não é a Fortuna que rege nosso destino, mas o próprio exercício de nossas ações. Não mais os céus, as estrelas, mas o ser humano e todas as suas possibilidades. Surge então o homem, demiurgo político e criador, o príncipe.

Estou certo de que é melhor ser impetuoso do que prudente, porque a Fortuna é mulher e, para ter-lhe o domínio, mister se faz bater nela e contrariá-la. E costuma-se reconhecer que a mulher se deixa subjugar mais por estes do que por aqueles que agem de maneira indiferente. A Fortuna, como mulher, é sempre amiga dos jovens, pois são menos circunspectos, mais impetuosos e com maior audácia a dominam (MAQUIAVEL, cap. XXV).

Em suma, Maquiavel convoca os cidadãos de seu tempo para o livre exercício das ações políticas. Ele não crê no mito, mas usa de coerência formal e literária para atingir o inconsciente coletivo e libertar do jugo da astrologia. Para Maquiavel, a Fortuna só existe quando os homens não fazem uso da ação, de sua liberdade de criar e recriar seus horizontes. As implicações dessa racionalização e secularização do mito constituem o esforço de Maquiavel em destruir a crença num determinismo e fatalismo que enclausuravam a Itália de seu tempo. Seu pensamento abre as portas para se pensar que a possibilidade e a liberdade humanas devem estar isentas dos grilhões da religião.

Uma vez que nosso livre-arbítrio permanece, acredito poder ser verdadeiro o fato de que a Fortuna arbitre metade de nossas ações, mas que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade quase inteira (MAQUIAVEL, cap. XV).

Maquiavel não conclui se os 50% de nossa ação exigem esforço ou esmerada virtude. A frase também pode querer dizer que a metade deixada aos homens vem quase automaticamente, e o que for feito por meio da virtude pode ficar para a metade pertencente à Fortuna. Maquiavel procura destruir a crença na total providência ou controle de Deus, argumentando que os céus (Deus, os espíritos ou a Fortuna) não retiram por completo do ser humano sua possibilidade de ação. O mais importante para o cidadão florentino é incutir em seus compatriotas a possibilidade de agir politicamente e se antecipar aos acontecimentos fortuitos. Uma rica analogia segue sua explicação:

Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se enfurecem, transbordam pelas planícies, acabam com as árvores, as construções, arrastam montes de terra de um ponto a outro; tudo foge diante dele, tudo se submete a seu ímpeto, sem conseguir detê-lo, e, embora as coisas aconteçam assim, não é menos verdade que os homens, quando a calmaria retorna, são capazes de fazer consertos e barragens, de sorte que, em outra cheia, aqueles rios estarão correndo por um canal, e seu ímpeto não será nem tão livre nem tão nocivo. Assim também se passa com a Fortuna; seu poder se manifesta onde não há resistência organizada, voltando ela a sua violência apenas para onde não se construíram diques nem se fizeram reparos para contê-la. [...] E assim acredito ter dito o suficiente sobre os obstáculos que se podem opor à Fortuna, em geral (MAQUIAVEL, cap. XXV).


REFERÊNCIA

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 2000.