segunda-feira, 8 de junho de 2009

O papel da Filosofia no ensino das Humanidades

Após o predomínio da racionalidade cognitivo-instrumental e do primado da técnica nos dois últimos séculos, ressurge nos meios acadêmicos uma forte preocupação em se ter as artes e as humanidades – literatura, filosofia e história – como eixos fundamentais da produção do saber científico. Tal preocupação já começa a tomar corpo no interior de diversas agremiações profissionais. A medicina, por exemplo, durante boa parte de sua história, teve o humanismo como fonte quase exclusiva do saber médico. Isso teria mudado a partir do século XIX, quando o desenvolvimento das ciências biológicas, em confluência com a física, a química e a matemática, determinou uma reorganização do saber médico, desconsiderando paulatinamente as fontes das humanidades.

O anseio por um saber em harmonia com o ser humano e o meio ambiente veio justamente com a constatação dos déficits e abusos da ciência, apropriada ultimamente pela lógica capitalista apenas em função de sua utilidade técnica e o ilimitado desejo de poder, como bem lembrou o filósofo Karl Jaspers.

Coube à própria filosofia o papel de engendrar as diretrizes e propostas para uma “nova ciência”, mediante manifestos em favor de uma nova ética (Jonas, 1995), da dignidade da vida humana (Habermas, 2004), e do conhecimento prudente (Santos, 2005), em oposição ao crescente caráter instrumental e utilitarista da ciência (Lacey, 1999).

O que almejam os filósofos da ciência? Estão alarmados com a previsão das conseqüências da ação científica para a vida como um todo no planeta. Resgatar espaço para as humanidades no espaço universitário não se trata apenas de evocar o princípio humanista do sofista Protágoras de Abdera (sec. V a.C.), para quem “o homem é a medida de todas as coisas”, tão alardeado durante o Renascimento. Mas, sobretudo o de buscar princípios e paradigmas capazes de reorientar o fazer científico para harmonizar o ser humano com a natureza.

Dentre esses novos paradigmas, temos o contrato natural de Michel Serres - um acordo não-assinado, que reconhece um equilíbrio entre “a força de nossas intervenções globais e a globalidade do mundo” (1991, p.59). Bruno Latour também observa as recentes reações da natureza às intervenções humanas como uma chave para entendermos a não-modernidade do mundo em que vivemos - uma retenção dos excessos da razão e de seus dualismos, do pensamento crítico, ou uma retenção das relações de propriedade e dominação da razão sobre os seus objetos do conhecimento (Latour, 1997).

Em outro encaminhamento contra uma sociedade dominada pela técnica, Boaventura de Souza Santos propõe o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, por meio das duas dimensões do princípio da comunidade: participação e solidariedade. Neste paradigma conhecimento-emancipação, a solidariedade torna-se a forma hegemônica de saber. Para ele é necessário “relativizar as pretensões cognitivas da racionalidade cognitivo-instrumental”, em reconhecimento dos limites do conhecimento como forma de resgatar as tradições epistemológicas marginalizadas na modernidade ocidental (Santos, 2005).

Além da comunidade acadêmica, a opinião pública deve ter um papel preponderante nessa reorientação. Até porque o mecanismo para se promover estas estratégias passa, se não exclusivamente, sobretudo pela via do consenso público. Não se pode olvidar o grande público (ou uma parcela especializada deste) para fazer tramitar, entre os grupos especializados (comunidade científica, jurídica, intelectuais etc.), os interesses, riscos e escolhas para orientar a atividade científica.

Princípios como responsabilidade (Jonas, 1995), precaução (Lacey, 2006), conhecimento prudente, solidariedade e participação (Santos, 2005), contrato natural (Serres, 1991), jamais sairão do campo teórico-moral numa sociedade despolitizada se não forem engendrados com a formação e capacitação de uma opinião pública, uma vez que “a solução dos problemas decorrentes da insuficiência do conhecimento científico, só superada a longo prazo, foi confiada ao direito” (Santos, 2005, p.185).

E se precisamos construir consenso, capacitar a opinião pública a um agir político que reordene o fazer científico, isso só será possível se resgatarmos o saber humanístico em nossas instituições de ensino. E a Filosofia, como disciplina humanística, possui em sua raiz histórica não apenas as condições, mas o dever de cooperar com este reposicionamento. Como bem afirmou o filósofo Nietzsche: “Nós somos mais livres do que jamais o fomos para lançar o olhar em todas as direções; nós não percebemos limite algum. Temos essa vantagem de sentir em volta de nós um espaço imenso - mas também um vazio imenso...”

Referências
HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965.
JONAS, H. El princípio de responsabilidad. Ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995.
LACEY, H. O Princípio de Precaução e a autonomia da ciência. Scient. Stud., v.4, n.3, p.373-92, 2006.
LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaio sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC, 2001.
______. Jamais fomos modernos - ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1994.
OLIVEIRA, J. A.; EPSTEIN, I. Tempo, ciência e consenso: os diferentes tempos que envolvem a pesquisa científica, a decisão política e a opinião pública. Em INTERFACE COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.29, p.165-175, abr./jun. 2009.
SANTOS, B.S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2005.

terça-feira, 2 de junho de 2009



Com O Discurso da Servidão Voluntária(1552), Etienne de La Boétie percebe que a gênese da desumana opressão exercida pelos poderosos aos menos favorecidos é atemporal e universal. Escrita como um mero panfleto militante, aos 16 ou 18 anos pelo pensador francês, enquanto estudante de Direito, esmiúça os porquês que levam a multidão a se permitir escravizar, cega e voluntariamente, a se dispor a servir.

A primeira razão da servidão voluntária é o HÁBITO. Por hábito, somos ensinados a servir, nos escravizamos. É o costume que, à medida que o tempo passa, nos leva não somente a engolir, pacientemente, os sapos venenosos da escravidão, mas até mesmo a desejá-lo: “pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais.”

Sendo assim, de se nascer servo e ser criado na servidão decorre naturalmente a segunda razão da servidão voluntária: a COVARDIA! Sob a tirania (mesmo que disfarçada), necessariamente os homens se acovardam, se escravizam: Os escravos não têm ardor nem constância no combate. Só vão a ele como que obrigados, por assim dizer embotados, livrando-se de um dever com dificuldade: não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos honra para sempre junto aos nossos semelhantes. Entre os homens livres, ao contrário, é à discussão, polêmica, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos: sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: “bestializar seus súditos!”.

Discorrendo sobre a terceira razão da servidão voluntária, a PARTICIPAÇÃO NA TIRANIA, La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são sempre quatro ou cinco homens que o apóiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vêm depois deles. E quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até ele.

Rousseau e o contrato social



A concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.

A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.

Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.
Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.

Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.
A vontade geral não é, de forma alguma, adição pura e simples de vontades particulares. Vontade geral não é simplesmente vontade de todos ou da maioria. Também não se trata da soma das vontades individuais, dos interesses particulares, mas do interesse geral, da vontade geral.